Ziiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiim
O éter finalmente tinha iniciado aquele efeito devastador em minha cabeça. A famosa buzina estava finalmente estourando meus tímpanos e não tenho muito que dizer a respeito disso. Estava no meu quarto, no anexo A1 da Universidade Federal e meu querido colega de quarto não estava. Talvez estivesse transando com minha namorada, ou ex. Não lembro que horas foi isso.
Tinha acabado de voltar do Bar, onde o efeito da cocaína misturado com cerveja tinha me deixado num estado de estupor terminal. Quem nunca inalou éter, por favor não leia mais este depoimento. É triste demais para entender ou tentar assimilar algum fato do que aconteceu.
Não sei quanto tempo fiquei gritando coisas sem sentido. Talvez tenha ficado alguns segundos ou até mesmo longos minutos. Tudo estava claro pois a janela que dava para frente do jardim botânico estava aberta, e os raios de luz das primeiras horas da tarde desfilavam timidamente pelo interior do meu quarto. Tinha dois quartos, uma cozinha-sala-escritório-quarto-três e um banheiro. Quem pagava o aluguel dessa perdição era minha mãe, com parte da pensão que meu pai tinha deixado, antes de morrer de câncer, há duas primaveras atrás.
Quando consegui abrir novamente meus olhos, senti que a claridade iria me cegar e fechei rapidamente as cortinas. Sentei no sofá e fumei um cigarro. Acabei me acalmando e até o barulho ensurdecedor acabou dando um pouco de trégua. Meu cérebro parecia voltar a raciocinar. Ainda sentia calor. Minhas costas estavam encharcadas. Decidi ficar apenas de cueca e joguei minhas roupas dentro do meu quarto. A porta estava quebrada faz mais de duas semanas.
Decidi pensar no que iria fazer mas minha mente estava em branco. Acabei ligando o som para não me sentir sozinho. Mexi no aparelho procurando uma música que me fizesse pensar e acabei colocando aleatoriamente na rádio do campus universitário. Uma voz conhecida, um pouco nova demais para minha época dizia coisas parecidas com isso:
“Embora você possa ouvir-me rindo, girando, dançando loucamente através do sol.
Não está vendo ninguém, está só fugindo correndo,
Pois no céu não há cercas revestidas.
E se você ouvir traços vagos de rimas enroladas
Para o seu tamborim no momento, é apenas um rude palhaço atrás,
Eu não lhe pagaria mente alguma, é apenas a sua sombra,
Visto que está lhe perseguindo.”
Aquela voz me fazia lembrar das tardes que sentava na varanda da minha casa, ao lado do meu pai. Ele era músico profissional e tinha um repertório bem amplo, abrangendo os principais cantores americanos. Bob Dylan era um dos seus favoritos e passei incontáveis tardes ao seu lado, ouvindo ele com seu violão ou gaita de boca. O câncer de pulmão tinha dizimado minha família e minha infância. Mas o gosto amargo pela nicotina foi à maior herança que meu pai tinha deixado. E hoje, seu filho, aquela figura miúda e loira que ele amou ter nos braços até o momento da morte, estava prestes a ter uma overdose.
Por alguns instantes fiquei com vergonha de mim mesmo e fui no banheiro. Me olhei no espelho e meus olhos estavam quase fora de órbita, no melhor estilo junkie. Comecei a rir de mim mesmo. “Já posso morrer, pelo menos tenho a mesma coloração que o defunto do departamento de anatomia”, pensei sozinho.
Num impulso, peguei a lâmina da navalha e acabei me cortando. Um jato vermelho de sangue jorrou de mim e acabou sujando o espelho e parte da parede daquele banheiro imundo. A minha reação foi gritar muito alto e segurar a sangue. Olhei pra pia e vi um pedacinho do meu mamilo esquerdo. Essa cena foi traumatizante.
Corri para a cozinha ainda sangrando e peguei meu potinho de sal. Ninguém nunca entende porque as pessoas de repente comem sal direto do potinho nas horas vagas. Eu vou dizer o porquê. Porque a maioria dos drogados guarda sua reserva de cocaína ali mesmo, ao invés da sal. É o único lugar que talvez uma revista policial não olhe, caso haja uma busca em sua residência. Nenhum policial gosta de comer sal em serviço.
Fiz uma carreira. Fiz outra. Fiz mais uma. Comecei a me sentir melhor. Muito melhor. Coloquei um calção do St. Pauli* e sentei de novo no sofá. Avaliei minha situação. Era ela. Era minha menina. Eu amava muito ela, e ela estava me traindo com meu amigo. Eu não podia entender isso. Sempre a tratei bem. Desde o começo, nosso namoro era um estopim de drogas e de sexo. Entramos nesse negócio juntos, depois de algum dia de show de rock ou de sinuca no bar. Não tínhamos nem vinte anos e nossas vidas já estavam acabadas. A triste realidade da juventude que decide sair do padrão e viver vinte anos em apenas alguns meses.
Olhei pro lado e achei meu maior troféu infantil: meu velho taco de hockey. Havia sido campeão nacional na categoria sub 17 e ainda possuía as medalhas da competição. Estavam dentro de uma caixa de papelão há uns 800 km do meu sofá. Na minha verdadeira casa.
Riiiing Riiing Riiing
O telefone começou a tocar e seu som pareceu rachar minha cabeça no meio. “Deve ser o diabo reclamando minha alma, ou até mesmo o Dani, que deve ser o diabo.” Devia dinheiro a ele. Eu não iria atender.
“Oi Fred, tudo bem? Não esquece de comprar as passagens. Estou lhe enviando dinheiro. Compre um presente para sua irmã. Amo você filho.”
A voz rouca e feliz da minha mãe fez o resto. Voltar para casa. Minha família. Ser feliz. Tudo isso era um contraponto com minha vida hoje. Eu era uma porra de um viciado. Um drogado. Um jovem triste e sem rumo. O que a maioria das meninas da enfermagem chamaria de um grande merda. Decidi acabar com isso. Peguei o taco e fui no apartamento da minha namorada. Ia arrumar minha vida. O problema era ela.
Cheguei lá e a porta estava aberta. Lá estava ela. Um short muito curto, uma camisa dos misfits rasgada e um batom vermelho. Muito vermelho. Seu cabelo estava todo armado e dava a impressão de estar na frente de uma estrela de rock falida. Ela abriu um dos olhos, sorriu e disse:
-Você demorou para vir querido.
- Cadê ele?. Só consegui falar
- Eu te amo, pequeno.
CRACK
Com o primeiro golpe tentei apenas intimidar para ela me contar onde estava meu amigo, qual o tamanho do pinto dele e se ele fazia amor melhor do que eu. Acertei a mesa que estava cheia de garrafas, copos e pontas de cigarros. A gritaria foi completa e eu estava completamente alucinado. Meus dentes estavam rangendo e minha visão era ofuscada por uma névoa inexistente. Também comecei a gritar e acabei abraçando ela. Eu estava ficando maluco.
- Cadê ele?
- Ele quem meu deus? Estive esperando por você o tempo inteiro.
- Você é uma vadia. E eu vou embora.
Peguei uma garrafa de vodka (uma das que rodou pelo chão e acabou não quebrando) e fui embora. Saí do prédio e atravessei direto ao parque. Estava totalmente chapado e era um bonito fim de tarde. O crepúsculo no horizonte ia morrendo aos poucos. Aos poucos, comecei a me sentir triste. Acabei vendo minha imagem no horizonte. Era um eu pequeno, com no máximo quatro anos, andando de bicicleta. Ao meu lado estava minha mãe e o meu pai. Naquela época eu era feliz.
Sentei num banco (ainda estava sem camisa e o sangue do meu peito já tinha coagulado), e chorei. Chorei muito.
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